Douglas

 

A viatura não voltou para fazer uma abordagem, ela voltou mesmo foi pra matar. Um tiro à queima-roupa. Eu tava pendurando lençol no varal. Aí só vi Mariane correndo, com um olho que parecia que ia sair pra fora, mãe o Douglas tomou um tiro, mãe!

Deixa eu explicar. Porque isso eu não me canso de dizer. Acho que todo mundo tem que ouvir. No dia 16 de agosto de 2017 meu filho de 17 anos tomos 3 tiros no peito por um policial. Ele tava saindo de bicicleta com um colega dele aqui do bairro. A viatura chegou, parou, e depois saiu batida. No que ela voltou, meu filho não teve chance, foi três tiros assim ó, pá, pá, pá, bem perto do peito dele. Nem um metro chegava.

Foi a própria polícia que socorreu meu filho. E é isso que eu falo pra todo mundo, né. É isso que me marcou, foi meu filho dizer que. Olha, você me desculpa tá, nessas horas dá uma vontade de chorar, mas eu me seguro. Vou me segurar agora. É que dentro da viatura, o colega do meu filho contou que ele ficava repetindo, Ô pai, por que ele me atirou? O que que eu fiz pra ele, pai?

Aí no hospital eu caí em desespero. Saí correndo. Depois de uns  15 minutos eles contaram pra minha irmã que tinha ido comigo, falaram ó, por mais que tentasse salvar o menino, não ia ter como salvar a vida dele. Porque o tiro dividiu o coração dele em dois.

Depois do tiro, aí veio aquela anarquia toda. A população se revoltou, queimaram ônibus, invadiram agencias bancárias, enfim, dois dias de revolta da população. E o policial? Ele foi preso em flagrante. Ele ficou 8 dias preso. Mas no dia que eu fui buscar o óbito do meu filho, eu recebi a notícia na rua de que aquele policial tinha saído. Ele tirou a vida do meu filho e só pagou com 8 dias de prisão.  Na corregedoria ele até foi exonerado mas o promotor pediu a absolvição dele porque, segundo as palavras do promotor, tem que ter testemunha e, segundo as palavras do promotor, o armeiro da casa branca provou por A + B que a arma que matou meu filho disparava com um simples chacoalhão.

Aí é o que eu sempre digo né. A gente vê tantas ocorrências, é viatura correndo pra lá, passando em lombada. Mas a gente não vê que não sai nenhum tiro, é o que eu falei pro promotor do caso, eu falei, então quer dizer que até o senhor, se tiver na frente de uma arma dessas o senhor também vai tomar um tiro? Porque se ela dispara com um simples chacoalhão! Enfim, só sei que ele foi absolvido. E agora minha luta é provar que aquela arma não tinha defeito. E eu prometi pro meu filho. Prometi que só vou parar de lutar em busca de justiça o dia que eu morrer. Porque enquanto vida eu tiver, eu vou lutar. E assim eu me junto com as outras mães pra me fortalecer. Pra tá de pé né. Porque senão a gente cai. Porque eu costumo falar assim. Que a gente é preto, pobre, periférico. Mas meu filho tinha a pele branquinha, era bem branquinho. Mas se vestia como um pobre né. Por morar na periferia. Bermuda da Cyclone, boné, camiseta de marca. E nisso a policia acha que se ele se veste assim, que ele pode tá vendendo droga, ou é traficante. Meu filho. Ele estudava, ele trabalhava. Mesmo que meu filho tivesse um caminho ao contrário, ninguém tem o direito de tirar a vida de ninguém, principalmente a PM. Porque ela tá na rua pra dá segurança pra gente e não pra oprimir nossos filhos, não pra oprimir quem é preto. Quem é pobre. Quem é periférico. É o que eu falo sempre, é difícil né, essa caminhada é difícil. Olha vocês me desculpa tá. Pela dor. Porque com uma dor dessas ninguém chega perto. Ninguém quer te ouvir. Mas mãe tem que falar. E vocês vão me escutar.

 

[ M.E, 2018]

[ Transcrição da fala de uma mãe integrante do movimento Mães em Luto da Zona Leste- SP.]

O elevador

O apartamento

rosa me pareceu mastigável. De fato era todo rosa, alguns tacos soltos, um pequeno altar de mármore na parede da cozinha- onde provavelmente o antigo inquilino deveria ter colocado um filtro de barro ao invés de um santo, bom, isso é o que eu faria. Farei? Menor ideia. Mas para mim, morador de primeira viagem, o apartamento quarto e sala com direito à sacada, cuja vista dá para a área de serviço da síndica, uma arfante Dona Dilma que parece nunca escovar os dentes, para mim, isto aqui é um oásis. Meu trampolim. A partir de hoje, senhoras e senhores, dou o primeiro passo nesta louca travessia que é virar gente.

O elevador

era daqueles antigos, totalmente rococó, madeira envernizada, painel de botões com relevos dourados nas laterais. Não era um elevador comum. A porta pesava. E nunca abria. A janelinha de visão estava coberta com um pano preto. Um elevador-mistério, que não quer ser reconhecido. Quando ouvi falar dele pela primeira vez, a boca de Dona Dilma fez uma pausa dramática medíocre ao saber que eu seria o novo morador do sexto andar. “Ah…o senhor vai morar ao lado do grande elevador.” E sua gargalhada gorda preencheu o ar de tanta oleosidade. Engoli a seco. Agora eu sabia: esse elevador não queria sua estória contada.

A escada

emprestada pela síndica com a pretensa finalidade de “limpar teias de aranha no teto” me serviu para executar a primeira operação: alcançar a janelinha, cortar o pano preto com uma tesoura e pronto, lá estava ele com suas entranhas à mostra. Meus olhos se espremeram entre as grades para não perder nada que podia ser visto. Por um instante, senti medo de enxergar segredos. Mas a fome de escrutinar vidas alheias era grande demais. Ora, pensasse ele duas vezes antes de estagnar justamente no meu andar, esse tolo.

A luz

do elevador ascendeu de repente. Estremeci. Era como se eu estivesse avançando uma fronteira proibida. Fitei a câmera de segurança do prédio. Estaria alguém me observando? Mesmo que estivesse, agora já estava feito. Porque lá no fundo de mim, senhoras e senhores, eu me sentia um vencedor. Havia me tornado um descobridor de passados. Descrevo aqui tudo que vi: Pastas escritas “Confidencial”, papéis com carimbos de gente importante; uma britadeira. Livros, folhas avulsas amareladas com o tempo; uma roupa de bebê puída. Garrafas PET, latas de tintas coloridas, uma coleira de cachorro; uma máquina de escrever, um terno militar, copos de champagne de plástico. Novamente sou tomado de assalto por aquele medo insistente, que me faz duvidar do meu corpo rijo, quase em suspensão no ar. Sou parte de uma investigação perigosa, pensei com absoluta certeza.

Os objetos

que até então dormiam, abruptamente  se colocaram de pé. Todos me olhavam, inquisidores. Querem saber quem os perturba. Vejo que eles armam uma trincheira contra mim, estão prontos para qualquer tipo de luta. A máquina de escrever faz um gesto no ar, a britadeira entende o sinal, como se todos estivessem se comunicando por código morse. Sou forçado a me preparar, tenho que me proteger do que está por vir. E de dentro do meu estômago se ergue uma voz que diz: “Por favor, não acabem comigo, sou apenas um forasteiro recém-chegado de uma vida neutra. Quero permanecer com vocês.  Lá fora, a vastidão do mundo sente e chora.”

Deisy

 

 

Mudar-se de bairro numa cidade grande sempre foi pra mim uma peregrinação entre padarias (ou padocas, como recentemente aprendi ser mais simpático falar por aqui). Sim- e isso é quase uma pergunta retórica: o que seria da vida bairrista sem as padarias? Um identidade rasurada, molhada pela chuva. A padaria é a metáfora do casamento de bodas de ouro, da comunhão do nascer do dia, da confraria entre bocas sonolentas que se debruçam no balcão das manhãs, ávidas pelo sabor de um pão na chapa com café com leite. A padaria é a celebração de um cotidiano marcado e indiscutível.

Eis que encontrei a minha, a qual ouso chamar de segunda casa, uma padaria judaica a poucos metros da esquina do meu prédio. Num primeiro momento, ainda consumida pela dúvida sobre qual delas seria meu novo território urbano, desconfiei. Doces cansados e nada convidativos, pães melancólicos que suspiravam por uma nova chance de existir, talvez em outra vitrine, talvez no estômago de qualquer um que os tirassem dali. Um dia, contudo; e nisso já se passava das sete da manhã de uma segunda-feira nublada, por detrás do balcão, fatiando o que me pareciam ser 200gr de presunto, percebi Daisy.

Daise loira, touca na cabeça, batom vermelho pintando a borda do copo de pingado que era pousado na pia na hora de retirar pedidos.

-Saindo um misto com café coado pro senhor!

-Bom dia coração, hoje é o mesmo de ontem?

-Ô meu amor, vou ficar devendo sua Carolina, não quer um sonho fresquinho?

A voz de Daisy se esgueirava por entre as conversas matinais, sua presença embalava o futuro de mais um cotidiano comum. Aos poucos, percebi um movimento de pessoas, um vai e vem de quipás e um trânsito de barbas brancas que se enfileiravam no balcão: bocas nos sanduiches, olhos em Daisy.

Naquele instante, compreendi tudo. Havia entre Daise e seus clientes famintos uma lógica única, um acordo tácito que se traduzia a cada mordida, a cada gole erótico compartilhado, e a marca de seu batom no copo à deriva corroborava ainda mais nesta pornografia imaginária, forjada por um simples café da manhã à escolha do freguês: plena luxúria temperada à gosto.

Quis interromper no meio do gozo alheio. Fui até o balcão, meus olhos cravados nas pupilas retintas de Daise. Minhas mãos abruptamente tatearam uma comanda-1675 de repente se tornou minha porta de entrada ao submundo.

-Por favor, eu quero um café. Um café duplo, balbuciei, tentando pensar no lanche que me faria permanecer mais tempo imersa naquele universo. E um misto quente com bastante presunto.

– Claro, minha flor. Fique à vontade. Qualquer coisa é só chamar. Meu nome é Deisy.

E com uma agilidade calculada, ela virou-se de costas pra mim, bebericou mais um gole no seu copo tatuado e começou a fatiar o presunto.

-Mas é Deisy com E no lugar do A e Y no final, tá? Porque do jeito brasileiro tem mais graça, né? Ah, Deisy safada, dona de todas as fomes.

As fatias de presunto deslizavam como corpos suados na máquina. Deisy imprensou meu pão na chapa, a gordura do queijo derretido era a preliminar perfeita para meus olhos recém nascidos, que a partir desse dia estavam prontos para enxergar a cidade grande que eu jamais havia visto.

Para ti sem fim

 

Sonhei que você me tirava daqui de olhos vendados. E pra onde te levava, você me pergunta, pra uma casa no litoral, te respondo, uma casa bonita com piscina e cachorros, e sinto que mexo com sua curiosidade pueril pois você desdobra as pernas e enrijece a coluna em sinal de atenção, mas uma casa habitada, você indaga, eu digo, sim, uma casa na qual morava uma família foragida, uma família que havia pulado o muro (quebrado uma telha), e se alojado no quarto do patrão, e me assusto com a mera pronúncia desta palavra gasta, mas havia um patrão, que antiquado, você me censura, eu digo sim, era o dono da casa, uma figura queimada de sol cuja filha gostava de dançar pros outros, e gostaria de dizer mas me reprimo pois temo que você se irrite, mas o desenrolar desta cena na minha cabeça me excita levemente, dançava em tudo que é canto a menina, continuo, bailava os pés finos no mar da praia.

E ela dançou para nós também, você me pergunta, tua boca armando o bote para me tascar um beijo que caso eu não evitasse muito provavelmente teria me arrancado um dente, eu digo sim, quer dizer, acho que ela quase dançou, sonho é assim, tudo acontece na velocidade íngreme do desejo, digo, posso ter sonhado a dança em algum outro corpo o qual jamais saberei, nem compactuo.

O que me lembro, continuo, e solto uma sobra de ar em um meio suspiro, é que estávamos todos juntos na varanda, chovia, trovoava, e de repente piso numa poça de lama que me encharca por inteira, minhas narinas, suas narinas, nossas narinas infiltradas de uma terra molhada desconhecida, e enquanto esperávamos ansiosamente o espetáculo começar, digo, da menina que dançava pros outros, o que vimos foram dois arco-íris no céu. Dois?, você me pergunta, incrédulo como uma criança, Dois, pontuo, sem me alongar sobre a contundência de um numero que beira o nada, e digo mais, além deles, dos arco-íris, também havia poças, cavalos e charutos, pudemos enxergar tudo de uma só vez.

E você me interrompe, Aliás, posso acender um? Gosto quando conversamos em meio à fumaça do meu cigarro, você fica bonita, e seus cabelos longos se unem aos meus quando as duas cabeças abruptamente colam uma na outra. As pessoas estavam embriagadas, continuo em tom de fábula, e olhavam pra cima, cegadas pela luz dos arco-íris, enormes, vivos, costurando o céu como uma grande cicatriz curvilínea que demarca um rosto; Mas o curioso foi que, chegada a noite, quando as cores dão lugar à escuridão do espaço aberto, os arco-íris que deviam inexistir lá permaneceram, como duas faixas paralelas, absolutamente vibrantes, desorganizando a imagem da noite comum.

Respiro novamente e vejo o desajeitado e lento franzir do seu cenho, aumentando a pressão sanguínea para um determinado ponto do seu corpo, a testa enrugada. E a família? E nós, não achamos tudo muito esquisito?, você me pergunta, e sim, eu sei que desconfia de cada palavra proferida neste jorro de ilusão, enquanto eu percebo o quanto você só gostaria de se deitar, olhar pro teto e fumar seu cigarro em paz.

Nós, eu digo três vezes, nós, nós, e depois de confessar a mim mesma que talvez houvesse esquecido do que se seguia no sonho, me calei por alguns segundos a te observar novamente, ah!, pudesse eu exclamar em voz alta, teus olhos puxados que dialogam carinhosamente com tua pele, e esta que exerce a solene função de confortar a musculatura quadrada do teu rosto, me envolvendo por inteira numa sensação inconfundível de que a face é apenas uma de tuas composições vivas, o que pode ser isso?, me pergunto, é puramente belo. Só e belo, me respondo.

Quero saber o resto, talvez o final, você me impõe, e por um instante antevejo a chegada de um medo crispado do fim, de um fim, apenas um.

Catamos pulgas no deserto, digo, e um doce pestanejar do teu olho direito me recoloca em uma espécie de eixo da realidade, como se pudesse terminar tudo agora e por um fio. Quer passar a pomada do olho, pergunto, sabendo que não haveria necessidade do presente cuidado, mas como é doce fazê-lo abrir esta tua bola de gude dilatada, que se põe a me olhar fixamente, na espera de uma substância cremosa e fria que te faz ver novamente com dureza tudo o que nos circunda. Por este olho, ah como eu daria o mundo só para vê-lo aberto agora, escancarado, belicoso, imprudente, desafiador. Meu olho-amante, imperdoável.

Mas quando angulo a cabeça em sua direção, a te olhar mais uma vez, você já não está presente, chafurdado em alguma ilha imaginária de quase impossível acesso. Esqueci o isqueiro na esquina da escola, digo, para que você volte a me escutar, já que não mais se atenta à composição volátil do meu sonho, só me resta a esperança de gritar nosso grito de guerra, a fadada frase que dedura nossa distancia geométrica, as diferenças de nossas frágeis embocaduras, de onde você vem e de onde eu venho?, toda vez me pergunto quando me deito para dormir.

Você ri com o canto da boca e em seguida vira o ventilador para meu lado, engraçado como você supõe meu estado de presença; quem sabe ela não esteja com muito calor, sim estou, você está certo, o calor, maldito calor e além do calor os insetos que proliferam ao redor dos nossos pés, que combinação perniciosa você pensa e eu também. É para ti, digo, é para ti o sonho, e quero dizer que o fiz pra te dar de presente, que é mais elaboração afetiva do que sonho, que é para ti e não tem fim, mas a voz que sai, sai embargada e displicente. É para mim o que, você me pergunta, eu digo, o sonho , fiz pra você, espero que você tenha visto os dois arco-íris que ainda estão lá, lá não, digo, que estão aqui, sob nosso teto, esmiuçando nossos movimentos e colocando palavras na minha boca, olhe para cima, partilhe-os comigo, você verá.

Para ti, sem fim, digo, e você repete, para ti, sem fim. Deitados, olhávamos pro teto, fumávamos todos o cigarros e o mundo a rugir com voracidade a tudo que naquele momento podia ser visto.

[M.E, 2018]

Me despeço com ímã

Coloquei um lembrete na porta da geladeira. “Agora acabou mesmo”, só pra me lembrar de realmente comprar essa ideia, assim como compro desinfetante quando está em falta.
Não quero fazer minha louça fazendo de conta que também é sua.
Não quero esperar você escovar os dentes pra me cheirar quando acordamos juntos.

Agora olho pra porta de vidro da sua casa. E ela me convida a sair e te deixar pra trás. Meus pés calejados quase abrem o trinco. É só pegar a mochila, pouca coisa resta de mim neste espaço, e partir.

“Estava atrasada, não quis atrapalhar seu banho quente”, eu diria depois querendo explodir sua cabeça e todas as suas irritações lamacentas, que inundam seu cotidiano tão eficiente.

Que vontade de sair porta afora e chorar toda minha bagunça. Eu vou. Vou agora. A porta está aberta. A água do seu banho está correndo. E dentro de mim corre uma vontade de te matar com a faca que você afiou tão bem ontem à noite, já pensando no churrasco do final de semana.

Decido voltar porque o ímpeto de escrever é mais forte. (E tem ímã sobrando na geladeira.)
“Bastaria, e a tinta vermelha dança sobre um pedaço de papel de bala, um pequeno beijo ligeiro. Podia até ser no canto da boca.” Mas não, ao invés do gesto, você diz, do alto de sua impaciência besta, “cuidado hein, seu tênis esta desamarrado.”

Cuidado hein.
Hein.
E em segundos todos os cometas que preenchem meu céu explodem, uma gastrite extrahumana invade todos os poros do meu estômago, e sinto me liquefazer a ponto de não me perdoar.

Entro no carro com a imaginária faca na mão. Minha mão suada segura o cabo de uma morte terrivelmente linda- que pode ser a minha ou a sua, fato que vai desenhar nossas figuras para além desse tempo mesquinho e teimoso.

Você olha pra frente, óculos escuros em dia nublado, enquanto eu tento espremer uma angústia pra fora de minha caixa torácica abafada.
O caminho até o trabalho é glacial- maldita hora que compramos uma geladeira frost free- desde quando ela parou de funcionar?

Desde quando nos dissemos algumas verdades flácidas, que pouco fizeram diferença em nossa pele.

Outro lembrete importante antes de partir: você dentro de mim. É tão bom. Quando as pernas se chocam violentamente e deslizam uma na superfície da outra, talvez esse momento, lembrança do interior de nossas noites úmidas, nunca poderá ser esquecido.

Daqui a algumas horas você voltará pra casa, com sede, abrirá a geladeira de forma displicente, tomará uma cerveja quase de uma só vez e se sentirá em paz.

Dentre esses grandes goles pretensiosos, estará eu achatada em pequenos pedaços de papel uivantes, desesperados, incansáveis papéis que clamam sua atenção, lembretes que sopram cada palavra escrita numa mistura de pavor e desejo. Mas não.

E aqui, outro lembrete: o energético que te comprei estourou e encharcou suas carnes moídas, coitada delas, moídas, espremidas umas nas outras.
Cuidado, hein?

E a geladeira, que outrora guardava nosso futuro repartido com prazer, animosidade e fúria, agora é um elefante branco pesando na fórmica da cozinha, com suas patas sujas e sua barriga vazia.

Quase me esqueço de dizer: manda um beijo pro seus filhos, tem balas de goma na dispensa, taças de vinho no porta copos e um sabor de despedida recheando nosso desventurado café da manhã. Fiz compras também.

Merda. Comprei tudo. Só esqueci o desinfetante.

 

[M.E,2017]

Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos

Se eu caminhar sobre você, seus órgãos sentirão meu cheiro?

Se eu chutar seu sexo com a ponta dos cabelos, o que dirá você da minha violência?

Se eu me despir com a timidez de um anjo triste

Se eu fugir com você para o corpo do mundo, o que você verá quando chegar lá?

Adormeceremos juntos.

E no centro, bem no centro de nossa terra

De nossos corpos brotarão raízes.

Corpos negros, fetos lentos, sexos de sangue.

Como nascem os anjos caídos?

—————————–

Das mulheres nasce o filho tecido

Das mulheres nasce um girassol sofrido

Uma negra dá a luz às mulheres de braços alados

Seios como potencia da vida

A vida como desejo lúcido do espírito

Como nascem os anjos caídos?

 

 

Enquanto se vive

Enquanto dorme ela pensa;

Tem ouvidos analíticos

Só enxerga através de lentes

E não faz uso de espelhos

 

Enquanto dorme ela escreve

Tudo aquilo de podre que sua poesia tem;

Um olhar de soberba para o fundo da pele

E suas mãos cansadas desenham asas no espaço

 

Enquanto dorme ela senta;

A cadeira é uma grade de ferro.

Faz barulho.

Mas ainda há o silencio. E ambos estão cansados.

A cama em que ela dorme está cansada;

A palavra que ela escreve está cansada;

E em seu mais bruto íntimo, um orifício que parece não existir, nasce um figo maduro que mata sua fome.

 

Enquanto ela dorme

Vinte e cinco anjos caem do céu e algo de vivo, morre.

[M.E, 2017]

O Ator e a câmera [digressões shakespearianas, 2017]

Lady Macbeth entra na luz. Da plateia vemos seu rosto marcado, possivelmente de uma mão pesada que não fê-la sorrir. Ela prepara o jantar. Possivelmente uma sopa que será servida fria, como a vingança que ela guarda no peito.

O marido de Lady Macbeth passa pelo corredor, ruminando seu medo covarde. Ele deseja o punhal mas não consegue segurá-lo. O punhal, por sua vez, respira ansioso para ser manipulado por alguma mão que não hesita, que não oscila, expressando antss tarde do que nunca sua materialidade obscena e seu fim.

Lady Macbeth cede lugar na mesa de jantar – que agora já está servida – à uma outra mulher, uma mulher que chora a história de um amor vingado. Sim, Cleópatra, você passou nesta entrevista de emprego. Seus olhos passaram pelos crivos da sua própria dor. Suas lágrimas de mulher ferida são as lágrimas de todas nós, mulheres, que sentimos as pedradas e flechadas de um certo destino feroz…

E pelos anos passados de história, as mesmas cenas se repetem. Pois é preciso repetir, é da repetição que nasce a verdade. Do encontro com o estado de espírito de cada personagem, e, através de sua força motriz, acreditar que é possível pertencê-lo, ocupá-lo. Em última instância, ser outro.

Rosalinda não nos deixa mentir. Porque ela se colocou no lugar do outro em nome de sua própria liberdade. Ela travestiu sua coragem, e sob o manto viril, foi atrás da experiência do amor.

Sentados à mesa, enquanto digerem suas ambições conflitantes,uma atriz retoca o batom como um gesto inabalável. Esse batom vermelho é o sangue que mancha suas mãos. Mãos pesadas, que vivem sob o fardo de muitas dúvidas. E, neste momento, um pensamento estanca em sua mente:

De que matéria é feita o medo?

Meu amor, de qual raiz germina o que é humano?

A começar que todo homem é um ilha. Não, um continente inteiro. Essa terra arrancada, essas pessoas, povos, vozes, memória. Essa escuta.
Meu amor, esse homem escuta nosso silêncio?

(…)

À mesa de jantar, Hamlet se recusa a sentar. Ele se agacha, fica do tamanho de seu mundo. Os atores, ele diz, preferem sonhar. E que nos sonhos, sejam eles ousados o suficiente para satisfazer a realidade. Mudar o registro, não ter medo do público. Sem temer, sem desacreditar. Assim nos fala o príncipe, e de seus pequenos olhos, escapa uma lágrima resistente que inunda suas palavras. Sim, Hamlet é feliz no delírio. Ele encara a câmera com a simplicidade de uma refeição mastigada lentamente….

Mas há também Ofélia, a menina-mulher desiludida, sugada por um amor inocente e embriagado. Que celebração pesada! Em um canto escuro, Ofélia cochicha para si mesma, alheia ao mundo. Ela tem os olhos vivos, que se perdem na razão, mas sua voz é de uma fragilidade encantadora. Ofélia não quer sentir o gosto da sopa. Baixinho, ela canta sua morte lamacenta.

Na outra ponta da mesa, tragando fumaça, está Ricardo Terceiro. Ao contrário de muitos que estão ali, seu prato é fundo e farto, e ele come abundantemente, como num grande banquete de Hécate, onde estão servidas todas as vicissitudes humanas. E ele as devora sem piedade. Ricardo é magnético. A câmera reflete sua realidade cruel e provocadora e, nesse momento, a realidade faz absoluto sentido.

Eis que nós, atores, estamos à mesa, servidos e satisfeitos. Ou não. Somos incansáveis e insatisfeitos. Por isso operamos a linguagem, ao invés de sermos apenas conduzidos por ela. Nesta celebração shakespeariana, a morte se entrelaça à vida a cada minuto que passa. E a vida emerge com vitalidade e desespero em cada respiração, cada pausa, cada sentimento proferido. Após um instante, um novo pensamento estanca em nossa mente. Ele diz respeito ao ofício do ator no cinema. Sim, atores, a câmera revela cada batida de nossos corações.

[M.E, 2017]

 

 

 

 

 

 

 

 

conto erótico na linha vermelha

[São Paulo, estação da República.]

Nadejda é empurrada para dentro do vagão. Naturalmente não há cadeira pra sentar. Ela tem coisas nas mãos. Será que não é uma boa ideia ir para a ponta, ela pensa, mas só de imaginar o caminho por entre sovacos suados sua cabeça pende, hesitante.
Nadejda está arfando, são deadlines, projetos sem dinheiro, editais para a madrugada, muitos shots de café. Nadjeda quer parar. Ela decide, mas a correria a seduz; ela não consegue diminuir a velocidade com que faz as coisas. Nadjeda gosta de fazer tudo ao mesmo tempo, ela sabe que consegue. Por um instante, ela pensa em escrever palavras como hálito, calor, pernas que se enroscam.
A porta automática abre para o Brás e num piscar de olhos, Nadjeda se sente num invólucro a vácuo. A onda de pessoas que acaba de entrar é uma lufada de ar que renova cheiros: o desodorante do motoboy se funde ao odor de papel picado do despachante; a colônia da jovem estudante se mescla ao azedume de um senhorzinho sem banho; Nadejda sente que um pouco de sangue começa a escorrer de sua vagina para o absorvente- ela sente cheiro de sangue.
Bresser-Mooca. As portas se abrem novamente para uma nova horda de seres humanos prensados pela necessidade. São caras bocas orelhas salivas. São homens e mulheres milimetricamente unidos, embriagados pela urgência de seus deveres.
Mas Liúbov não tem pressa hoje. Ele acaba de ser promovido para o setor de logística da grande empresa na qual trabalha. Ele está feliz, ele é um homem satisfeito. Aquelas pessoas que o comprimem no metro não lhe afetam, porque ele pensa no futuro. E enquanto pensa no futuro, por um instante ele pensa em escrever palavras como água, boca, olhos de pimenta.
Entre as estações Tatuapé e Belém, uma freada brusca coloca Liúbov frente a frente com Nadejda. A essa altura, cada vez mais gente preenche lacunas, menos ar há para respirar- a fundura da pele de um entra em inevitável contato com a superfície da pele de outro; a temperatura elevada torna a atmosfera quase insuportável, o peso do ar quente faz carinho nos rostos melados. Liúbov sente o corpo de Nadejda colado ao dele, suas pernas enroscadas nas dela. Pura arbitrariedade espacial. Já Nadjeda evita olhar pra frente. A proximidade do rosto de Liúbov lhe causa certa tontura n’alma. Indelicado esse sujeito se prostrar assim diante de mim, ela pensa, respirações quimicamente entrelaçadas, como num espiral genético. Pura arbitrariedade do ar.
Em certo momento, os dois se fitam. Antes do segundo que os faz desviar o olhar, eles se fitam mais a fundo. E dessa vez, há uma linha invisível, feita de puro encanto, que chama a atenção um para o sexo do outro. Liúbov sente uma gota de suor frio percorrer-lhe a têmpora. Ele não ousa se mexer.
Nadjeda é toda sinapse; suas pernas enrijecem, sua respiração aumenta na velocidade de um fósforo riscado. De repente, mal consegue perceber, suas mãos tocam as pernas de Liúbov. O tempo suspende.
O corpo de Liúbov quer prender o de Nadjeda com força, num rasgo de desejo de possuí-la. Este corpo de mulher pesando contra o dele, esta carne que ele desconhece, faz seu membro latejar. Por um instante ele poderia escrever palavras como cabelos, veias, torpor.
Carrão, Penha, Vila Matilde. E as mãos de Nadjeda apresentam um leve espasmo subindo em direção ao meio da calça de Liúbov. Você está proibida de se mexer, pensa ela, tentando se comunicar com suas extremidades. Em vão.
Nadjeda não quer acreditar na súbita atração de corpos estranhos. Aos poucos ela entende que seus dedos tateiam o volume de um desconhecido. Aos poucos ela entende que sua vagina proclama uma palavra fugaz, um grito de quem ama com medo.
Há um prazer escondido em desejar uma pele estrangeira–a libido de um instante efêmero. Estou completamente viva, pensa ela, enquanto Liúbov perfura seus olhos como para entender o que está acontecendo. Os dois silenciosamente assentem, num grande sim que transcende linguagens, um sim de ferômonios que dialogam, de dentes que desejam se apresentar, de tesão proclamado, ainda que em sussurros.
Nadjeda e Liúbov se tocam, seus sexos em plena função de existir. Que assombroso é se entregar, ela pensa, e esfrega sua vagina molhada com minúcia e força contra o pênis de Líubov. O metrô para. Estação Guilhermina Esperança.

Não, você não pode descer nunca mais, ela pensa, gemendo com os olhos.
Não, eu não posso descer nunca mais, devaneia ele, com louca desfaçatez.

As portas se abrem, pessoas são cuspidas pra fora, há espaço para desintegrarem-se. Líubov dá um passo para trás, o mais difícil passo de uma vida inteira. Nadjeda cerra as pálpebras. Talvez o escuro lhe faça um afago.
A tentativa de verbalizar é inútil.
Eles apenas sentem. E sentir basta.
Quando Liúbov coloca os pés na plataforma, a coragem de Nadjeda sai num esgar miúdo de voz: Quem é você? Ela não pensa, mas diz.
O sinal de fechamento da porta apita, Liúbov parado, Nadejda quase em movimento. Ele tenta pronunciar alguma coisa mas o barulho do metro encobre o frágil som da sua fala. Nadjeda vê o deslocar de uma boca que ela nunca beijou, ao pronunciar sílabas que ela nunca saberá quais são.

Neste breve instante, em que a razão impera sobre essas duas almas nuas, Liúbov e Nadjeda pensam que poderiam escrever uma única frase juntos: não há nada mais quente do que uma invisível linha vermelha.

[M.E, 2017]

quando o choro acaba

Crônica inacabada [para almas jovens]

Tem uma criança chorando no canto da sala. Ela desliza na parede feito uma lagarta listrada.
Tem uma criança chorando no cantinho da sala. É bonito chorar– pensa a criança.  Isso eu já sei fazer e ninguém precisou me ensinar. A criança saí por ai guardando o choro para si, para economizar.

Tem um menino comendo pipoca na esquina. Ele abre o saquinho, e num só respiro, joga todas as pipocas dentro de sua boca gulosa. As pipocas se acomodam mas é um empurra-empurra danado.

Por ali passa um cachorro sabichão que tem mania de ouvir música.  Dia e noite ele procura o trompete do negão que toca um som no banco da praça. Mal o negão se instalou, lá vai o cachorro sabichão sentar-se ao lado dele a lamber-lhe os pés. Horas se passam ali em meio às melodias de homem-cachorro.

Tem um dia que a água do mundo acaba. Papai acaba, mamãe acaba, jardim acaba. Tem uma criança tentando chorar no canto da sala. Ela se lembra como é, faz careta assim, faz careta assado e nada acontece, o choro também é passado.

É preciso falar com as autoridades! Como é possível o choro acabar! Vamos reivindicar. Guardem suas lágrimas, estamos em estado de alerta, não saem de casa, não se assustem, não amem, falem apenas o necessário, ao some da sirene, todos devem se recolher.

As autoridades criam pregadores radioativos para conviver com a falta que a água faz. Tem pregador de tudo. Pregamor, Pregador, Pregarancor, Pregabronca pregafuror. Assim ninguém precisa chorar por nada e esse problema está dado por resolvido.

Horas se passam ali em meio ao vazio de choros. Só o silêncio que chora baixinho. A menina coloca todas as lágrimas que guardou dentro de um balde etiquetado com o nome dela.  O cachorro anda coitado– pregaram-lhe as orelhas e ele não pode mais ouvir música. Mas também mesmo se pudesse de nada adiantaria. O Negão tem pregadores pelo corpo todo e não consegue improvisar com seu trompete. Sua inspiração musical o abandona sorrateiramente. Já o menino não sai da esquina e não tira seu saquinho de pipocas da mão. Pregaram-lhe a fome e ele não sabe se joga fora o saquinho ou se come as pipocas por piedade.

Enquanto o choro ainda é uma questão a ser discutida na Câmara, o país importa do além mar uma engenhoca digna de respeito, que até então apenas o primeiro mundo conhecia. Trata-se do produto “Tears To Go”, uma máquina revolucionária. Crianças podem comprar doses de  choros diversificados, todos de primeira qualidade a preço de custo. “Não pense no seu choro, tenha o que sempre quis!”

[M.E,2015]